Transgêneros
V.L.* nasceu como menina. Mas desde criança não conseguia se aceitar no próprio corpo. Se sentia diferente e dizia que não conseguia se encaixar nas chamadas ‘panelinhas’, na escola. “Demorei até a adolescência para compreender o que se passava comigo. Pensava que estava sozinho no mundo”, afirma. Tudo começou a mudar quando ele descobriu outros transexuais e teve acompanhamento psicológico para entender o que se passava com ele.
Ainda não existe uma explicação cientifica confirmada para casos como o de V.L. Como explicar para a sociedade que uma pessoa com um aspecto físico de uma forma não se identifica com aquele corpo? Que a cabeça dela pensa uma coisa, e o físico é outra?
Estima-se que uma em cada 100 pessoas no mundo sejam transgêneras/transexuais, isto é, aquelas que não se identificam com seu sexo de nascimento. Em maio deste ano, a Organização Mundial da Saúde mudou a classificação da transgeneridade para deixar de uma condição patológica ou distúrbio e ser estudada para que seja inserida num outro contexto.
Apesar de não existir uma explicação confirmada para a transexualidade, uma vertente diz que em algum momento, o feto durante a gestação, recebeu uma dosagem hormonal maior do que aquela que estava sendo definida pelo seu sexo. Quando uma menina/menino recebe uma alta dosagem de hormônio feminino/masculino, logo o desenvolvimento do seu corpo não acompanhará a sua cabeça, a identificação e aceitação do seu corpo. Mas isso é apenas uma teoria, nada afirmado.
O processo de mudança de gênero ou sexo deve ser acompanhado de perto por psicólogos, endocrinologistas e psiquiatras. Geralmente, é necessário saber se realmente a pessoa está decida com a mudança antes de fazer a cirurgia.
“Eu entendo que as mudanças corporais precisam ser feitas pouco a pouco, etapa por etapa, pra que que a pessoa possa experiênciar com mais maturidade as suas mudanças e saber com uma certa precisão de si mesma, qual será seu próximo passo e não fazer tudo de uma vez como se fosse uma transformação mágica”, explica o psicólogo Ricardo Martins, do Centro de Referência e Treinamento do DST Aids de São Paulo.
O tema é muito complexo de ser entendido, pois além de não haver uma explicação categórica sobre o assunto, ele pode ser muito subjetivo se visto da forma relacionado com a cultura de cada local. “Não existe uma afirmação cientifica humana, do que seja um homem ou uma mulher na sociedade. Existe um ponto de vista biológico-físico, mas vai da função de que cada exerce na sociedade. Um homem da Fenícia antiga é diferente de um homem da Grécia antiga”, afirma Ricardo.
Antropólogos afirmam que o biológico não confirma a questão do gênero. São questões independentes que foram aproximadas por uma história cultural-política. Não existe uma relação de dominante e dominado entre homens e mulheres, bem como não se pode determinar se uma pessoa é homem ou mulher por um ter características diferentes do outro. É uma construção cultural.
Sendo assim, Ricardo afirma que é quase impossível diagnosticar o gênero de alguém. “A identificação de gênero é uma maneira de ser no mundo” e não uma patologia.

Não existe uma afirmação cientifica humana, do que seja um homem ou uma mulher na sociedade. Existe um ponto de vista biológico-físico, mas vai da função de que cada exerce na sociedade
Ricardo Martins
Centro de Referência e Treinamento do DST Aids de São Paulo
Mas a confusão começa quando todas essas determinantes são misturadas e entendidas todas como uma só. É necessário esclarecer que essas cinco formas são independentes entre si e que cada uma tem uma característica de representação diferente. Nesse ponto que é bem comum perceber que boa parte da população não compreende todas estas variações de gênero. "É possível que um transexual seja lésbica ou gay pois a transexualidade está na identificação do gênero. E outra coisa é o sexo pelo qual ele se atrai", explica Ciasca.
Ele também fala que a sociedade está muito fixada nessa ideia de que é preciso mudar o corpo porque a partir daí todos os problemas se resolverão. Na verdade as transformações no corpo devem vir aos poucos, e é recomendável fazer um acompanhamento psicológico para que aja aceitação do indivíduo na sociedade e também a autoaceitação. Mas ressalva que é preciso ter muito cuidado ao julgar essas decisões pois existem vários outros aspectos da sexualidade humana que influenciam nesse processo de mudança.
No caso de Viviany, ela realizou as mudanças por uma questão de sobrevivência e de influência. Existem ainda casos mais intrigantes do que o dela, como de pessoas que não se identificam com seu corpo desde a infância e são esses que intrigam a ciência.
O Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo é um dos únicos no Brasil que recebem pessoas que qualquer idade para tratar dessa questão de identificação do próprio corpo. Lá, cada um que chega recebe orientação e acompanhamento psicológico para entender o que realmente acontece nessa confusão de identidade. O psiquiatra Dr. Saulo Ciasca, especialista em Sexualidade, Identidade de Gênero e Orientação Sexual é um dos médicos que recebe e acompanha as pessoas que chegam procurando ajuda.
Ele explica que existem cinco determinantes de definem a sexualidade de uma pessoa, e geralmente são elas que geram uma confusão para quem não se identifica com o próprio corpo.
O primeiro determinante é o sexo. Uma pessoa pode ser macho, fêmea ou intersexo e isso é definido no momento em que formado o feto, independentemente da raça. O segundo é a identidade de gênero, que é como o ser humano é diferenciado uns dos outros na sociedade, podendo ser homem ou mulher. O terceiro é a orientação sexual, que é aquela em que como um ser humano se relaciona sexualmente com outras pessoas, podendo ser heterossexual, homossexual e outros formas de relacionamento.
O quarto determinante é o papel de gênero, que é como o ser humano se expressa na sociedade, que pode ser masculino, feminino ou andrógeno. E o quinto e último determinante é a afetividade, que é como o ser humano se relaciona socialmente com outras pessoas, podendo ser heteroafetivo, homoafetivo ou biafetivo.
As histórias e incertezas de como é não se identificar ou não ser identificado com seu próprio corpo
Por Aline Oliveira e Camila Eneyla
SOCIAL
Identidade
Qual a identidade do seu corpo?
Viviany Beleboni, tem 27 anos é modelo. Sua vida começa em Porto Alegre, onde vivia com seus pais. Na adolescência, era surfista e adorava andar de skate. Até que um dia sua vida virou do avesso. Seus pais se separaram e ela foi expulsa de casa, tendo assim que se virar para sobreviver.
Logo quando saiu de casa passou a trabalhar como drag queen em várias boates do Rio Grande do Sul. "Sempre gostei dos shows, daquele luxo e glamour das drags, achava lindo a performance delas". Foi neste momento que sua vida iria mudar para sempre. Num dos shows ela recebeu uma proposta de um amigo para se transformar em transexual, pois, achava que se ela era tão bonita vestida de drag, ficaria mais ainda transformada de mulher.
Como sua vida e estabilidade financeira já não eram mais as mesmas, ela decide então mudar o seu corpo, seu gênero e sua identidade. Colocou prótese de silicone nos seios, nas nádegas, e fez cirurgia para tornar o rosto mais feminino. “Eu tomei um susto depois da cirurgia do rosto. Fiquei procurando no espelho o meu rosto de menino e não encontrei”, revela.
A história dela é mais uma do universo de pessoas que trocam sua identidade por não se entenderem com o próprio corpo e decidem mudar de gênero. Apesar deste caso ser um em especial em que as mudanças físicas vieram antes do psicológico, a escolha de mudar o corpo ocorre principalmente por uma falta de uma combinação entre a mente e o físico.


Viviany com era antes e depois da cirurgia

Viviany Beleboni na Parada Gay 2015

Preconceitos e superações
E justamente por haver uma construção cultural sobre a identificação do que seja feminino e masculino na sociedade, os transgêneros sofrem com a adaptação das mudanças e dificuldade para se integrarem no mundo social.
Viviany ficou famosa neste ano por sair crucificada na parada gay, o que levantou uma série de discussões sobre a relação cultural-religiosa. Ela fala que além da dificuldade que é ser transexual, ainda tem que lidar com o preconceito todos os dias. Um deles foi quando conheceu um rapaz em uma festa e depois de horas de conversa, ele percebeu que ela era transexual e ficou desconcertado, pois estava com vergonha de mostrar para o seu amigo que havia sentido atração por ela.
É o que afirma também V.L.* que após arrumar um emprego numa pequena empresa pediu sigilo no momento da sua contratação. Porém, não demorou muito para que todos os seus colegas de trabalho soubessem. "Por mais que pedirmos respeito na descrição, sempre alguém acaba sabendo. No meu caso, a informação veio do RH. Isso é muito chato porque fica aquela especulação sobre a sua vida, sobre o que você é ou não é".
Mas o que ambos afirmam que faz uma grande diferença é a mudança no nome. No Brasil, atualmente, para que um transgênero consiga trocar formalmente de nome é necessário um diagnóstico psicológico, médico e quase cirúrgico para enfim se conseguir fazer a troca. O uso do nome social é permitido, mas as vezes nem sempre é respeitado. V.L afirma que certa vez teve que recorrer a defensoria pública para conseguir se matricular numa faculdade com o nome social.
Apesar de tudo os dois atualmente se sentem bem no corpo em que vivem. Viviany já modelou para várias empresas de moda e V.L é analista de sistemas. Ele finaliza “É difícil pra todos, mas com tempo as coisas vão se encaixando e as pessoas vão se acostumando. ”
*V.L. – Nome alterado para preservar a identidade.